15/03/2011 13:03

O docente: um ser em formação

  

Por Hedivan Júnior

Dentre as várias práticas propostas por Freire na sua Pedagogia da Autonomia, far-se-á neste item a apresentação de uma dessas, que é a inconclusão do docente na sua prática pedagógica, ou seja, o professor como um ser em constante processo de formação. Não é a pretensão deste trabalho, esgotar as reflexões, mas a partir da proposta, ler à luz desta pedagogia, a prática da docência em nossas escolas, principalmente no município de Araçuaí.

O ser, desde o seu nascimento, encerrando com sua morte, está em constante processo de construção e desconstrução, isto é, modificando-se. Ao passo que muda o físico, muda também a mentalidade, a consciência e o modo de cada um ver as coisas apreendidas no mundo que o cerca.

O homem aspira chegar a um nível elevado, ou ao menos satisfatório do conhecimento. Quando se alcança este nível, estagna-se a este mero e tênue conhecimento, julgando por vezes, ter chegado ao ápice, ao ponto mais alto que poderia chegar.  

Nas escolas de hoje, por situações diversas, infelizmente se vê docentes neste mesmo patamar. Uma consciência e uma prática defasada, engolida pelo comodismo, abafando aquele espírito constante de renovação que deveria norteá-lo cada vez mais.

Segundo Streck, “a consciência é o meio através do qual o ser humano atinge novos níveis de relação com o mundo”[1] ou seja, é através da consciência do docente que ele poderá analisar o seu próprio mundo, o do educando propondo novas buscas, descobrindo assim novos caminhos. Assim sendo, direcionará melhor seu trabalho em sala de aula.

Lembramos aqui, naquela época remota da filosofia antiga, tinha-se esta idéia de movimento, mudança. É o παντα ρει de Heráclito. “Nada permanece imóvel e fixo, tudo muda e transforma sem exceção[2]. Nas palavras do próprio Heráclito:

 

Não se pode descer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado, pois, por causa da impetuosidade e da velocidade da mudança, ela se dispersa e se reúne, vem e vai, (...). Nós descemos e não descemos pelo mesmo rio, nós mesmos somos e não somos.[3]

 

  Como podemos constatar, desde os primórdios havia esta preocupação e a concepção de que o ser humano é mutável, pensamento e corpo. Equiparando, percebemos por vezes não raras, uma posição antagônica do professor moderno, no que concerne a este pensamento de Heráclito. Diante dessa característica, é preciso despertar a consciência para assim melhorar esta ‘práxis’[4]  educativa de cada professor.

Na obra Pedagogia da Autonomia, Freire enfatiza a importância de buscar cada vez mais conhecer. O conhecimento é uma fonte inesgotável, onde o docente na sua prática, na medida da necessidade, procura beber desta fonte para saciar a sua sede. Não obstante, o professor se torna também esta fonte onde o educando bebe. Portanto, é necessário esta procura pelo saber, esta consciência da mutabilidade do indivíduo e impulsioná-lo para aprimorar-se cada vez mais.

O homem é um ser inacabado, pois muda de idéia, sofre influências do meio onde vive. “Na verdade o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento[5]”. O professor também muda e deve mudar porque ele faz parte desta cadeia vital onde “tudo escorre”, e onde há vida, há transformação.

Não basta apenas dizer que o homem muda, mas esta idéia de mudança tem de tornar presente e consciente em cada educador. “E só entre mulheres e homens que esse inacabamento se tornou consciente” [6].

Este inacabamento faz parte também da vida do animal irracional, porque está inserido nessa cadeia de animal vivente. Mas nunca a inconclusão vai tornar-se consciente, porque a consciência é algo próprio do ser humano.  

Diante de tudo isso, Freire quer revelar que o professor não sabe tudo e que o aluno não sabe nada. Opondo-se àquela concepção bancária do modelo convencional de educação. Quer incentivar o professor a pesquisar sempre, com isso adquirindo um aprimoramento do seu saber. O ser, o docente, na concepção de Freire:

 

Não está dado como certo, inequívoco, irrevogável, que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece[7].

 

 O ser “não está dado como certo”, portanto, deve estar preocupado com a busca, com o aprimoramento do conhecimento. Um ser que aspira ao aperfeiçoamento, mas também consciente que nunca o abstrairá definitivamente, mas a cada dia pode conquistá-lo, gradativamente. O professor deve ter esta consciência da necessidade de uma formação permanente. Para tal, exige pesquisa, amor, dedicação e interesse pelo seu próprio aprendizado e pelo do educando.

Como nos apresenta Vasconcelos à luz de Paulo Freire: “Inexiste educador consciente que não esteja em constante renovação científica, que não alimente sua curiosidade pelo novo, pelo desconhecido”[8]. Nas palavras do próprio freire:

 

Fala-se hoje com insistência, no professor pesquisador. No meu entender o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e assuma, porque professor, como pesquisador. [9] [grifos nossos]

 

E acrescenta-se ainda que só há busca, pesquisa constante, quando se tem esta visão de que é um ser inconcluso, em constante formação. Por ser professor, deve ser um pesquisador. E se pesquisa é porque tem necessidade de aprimoramento. Se aprimora-se, portanto, é inconcluso.

A partir das mudanças provenientes do docente, conseqüentemente a escola também muda, pois de uma forma ou de outra, o professor é metade da face escolar. É preciso que o docente oponha ao modelo tradicional de uma escola que expulsa os alunos, impede a participação reduzindo ao autoritarismo[10] abrindo a esta educação com o educando. Na interpretação de Streck:

 

Paulo freire sabia muito bem que tal escola não se consegue criar por decreto. Por isso, uma de suas prioridades estava na formação permanente no quadro docente das escolas. Ele sabia que antes de tudo precisava haver escola, ou seja, salas de aula, carteiras, giz, bibliotecas.[11] [grifos nossos]

 

Investir na formação é melhorar e proporcionar crescimento a todo o corpo docente e discente das escolas. É querer bem a todos. Isso com certeza ajudará muito na conquista da autonomia de cada ser em si. Impulsionará o professor a buscar cada vez mais. 

O educador deve ter uma visão crítica com relação ao seu comportamento dentro e fora da classe. Como enfatiza Luckesi:

 

Cabe ao educador questionar permanente sobre os objetivos de sua prática, sobre o sentido dos procedimentos que utiliza, sobre o que é conhecimento, sobre efetividade, sobre os métodos, sobre os conteúdos que veiculam e tantos outros objetos que estão comprometidos com sua prática.[12]

 

A atitude do questionar é próprio de quem quer mudar. Quando houver esse desejo de mudança, é certo que esta consciência do inacabamento estará despertando. E com isso é beneficiado tanto o professor quanto o aluno. A partir do questionamento o educador vai se entendo como inacabado, inconcluso e que deve ser este indivíduo sempre a procura do aprimoramento, do “ser mais”.

Com o exposto, conclui-se que o professor deve se abrir a esta formação continuada, formação permanente. Esta consciência do inacabamento exige, portanto, pesquisa, para assim aprimorar, atualizar, crescer como professor e também fazer crescer o aluno.

Há uma enorme necessidade de investir no professor. Isso também significa boa remuneração. Desse modo haverá também entusiasmo em aprender e ensinar. E conseqüentemente o educador, o educando e as escolas sairão ganhando. Isso leva a perceber que a culpa não está totalmente no professor, mas também no sistema educacional. Isso não isenta de forma alguma a missão, consciência e práxis do professor em querer ensinar, e ensinar no sentido amplo e original da palavra. Educação antes de tudo deve ser entendida como vocação.

Em muitas escolas de hoje, a maioria do corpo docente estão pouco preocupados com esta inconclusão. Há uma estaticidade, não esta busca pelo aprimoramento. Prevalece ainda aquela concepção bancária de que o aluno nada sabe. Percebe ainda o equívoco em pensar que seu saber já está formado, não se propondo a mudanças. Crê-se que esta consciência da inconclusão inicia quando é percebido que o professor é influenciado pelo aluno e que ele o faz aprender.

O que também falta muito é a união dos professores na incessante busca de seus direitos. Nas greves, por exemplo, uns param, outros não, uma maioria esmagadora paralisam mas não sabem ao certo o que reivindicam. E pergunta-se: paralisam apenas por um aumento de salário? Tantas outras coisas que também precisam mudar na educação de nosso país, mas poucos as percebem e poucos fazem para que de fato as mudanças ocorram. E volta-se à premissa deste trabalho: o que falta é ter consciência, mas, a consciência sozinha não é válida, ela, (a consciência) reclama, sobretudo, uma práxis.

Partindo de experiências realizadas em sala não se pode de forma alguma deixar de mencionar também o proceder dos alunos frente a sua autonomia e liberdade. As maiorias dos alunos que povoam nossas escolas não estão preocupadas com o aprendizado em si, e sim no passar de ano, adquirir notas. Deste modo, não estão preocupados diretamente com o que ensina e fala o professor, apenas lê e decora o conteúdo fazendo uma boa avaliação.

       Com a libertinagem dos alunos em sala, o professor perde totalmente o controle. Perante esta complexidade de fatos principalmente a indisciplina do aluno, não aguça a vontade do professor em pesquisar, aprimorar-se e conseqüentemente preparar uma boa aula, dinâmica e criativa que envolva de forma completa o ser do educando.

Inadmissível também é o fato de o professor se conformar com essa situação calamitosa, não tomando consciência ou atitudes para melhorar esta lastimável situação. Pelo contrário, encontra-se muitos que estimulam esta prática defasada, que destrói a autonomia e fere o direito de o aluno aprender.      

 Essa tomada de consciência da inconclusão que se torna a afirmar, acontece com pesquisa constante, e se não há essas pesquisa, provavelmente não haverá a necessária e essencial vocação para a árdua e difícil tarefa de educar. Acredita-se que é a partir desta concepção e consciência que provem todas as outras qualidades da docência. Qualidades que se adquire com uma formação construída, dia a dia; com e pelo educando.

 


[1] STRECK. Correntes Pedagógicas, 2005,  p. 50.

[2] REALE, Giovanni; ANTÍSTERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, 2005, p. 35.

[3] Heráclito Apud REALE, Giovanni; ANTÍSTERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, Vol. I, Paulus, 2005, p.36.

[4] “É um termo grego que significa Ação (...). significa ainda, que não há revolução com verbalismo, nem tampouco com ativismo, mas som com a práxis – ou seja, com reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas (...). para que haja práxis, é essencial, que o indivíduo seja levado a tomar consciência de sua realidade, para que, então, possa refletir sobre ela, finalmente questioná-la.” (VASCONCELOS, Maria Lúcia Carvalho; BRITO, Regina Helena Pires de. Conceitos de Educação em Paulo Freire, 2006, p. 157). 

[5] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa, 2008. p.50.

[6] Ibidem. p.50.

[7] Ibidem. p.52.

[8] VASCONCELOS, Conceitos de Educação em Paulo Freire, p. 100.

[9] FREIRE. Op. cit., p.29 (nota de rodapé).

[10] STRECK. Op. cit., p. 50.

[11] Ibidem, p. 59.

[12] LUCKESI apud OLIVEIRA, Ivanilde Apomuceno de. Filosofia da Educação: reflexões e debates,  2006, p. 37.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2008. 

 

OLIVEIRA, Ivanilde Apomuceno de. Filosofia da Educação: reflexões e debates. Petrópolis: Editora Vozes, 2006.

 

PIMENTA, Selma Garrido. Formação de Professores: Saberes da docência e identidade do professor. Revista de Educação [O papel político da escola], Brasília, ano 26 – Nº 104 – jul/set, p. 45-61 de 1997.

 

REALE, Giovanni; ANTÍSTERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, Vol. I. São Paulo: Paulus, 2005.

 

VASCONCELOS, Maria Lúcia Carvalho; BRITO, Regina Helena Pires de. Conceitos de Educação em Paulo Freire. Petrópolis: Editora Vozes, 2006.

 

 

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